Cristo desceu ao inferno?

Você conhece o “Credo Apostólico”? Se não, deveria, pois ele é o mais importante símbolo da igreja cristã. Mas, ainda que não o conheça completamente, ou talvez só não esteja lembrado de suas afirmações de fé, não lhe deve ser estranho uma das suas afirmações que diz “desceu ao hades”. Afinal, o que ela significa?

Hades é uma palavra grega que pode ser traduzida por sepultura, mansão dos mortos ou inferno, por isso é também comum que no lugar de “desceu ao hades” se encontre a frase “desceu ao inferno”. Ela não é encontrada literal ou explicitamente nas Escrituras Sagradas, nem se baseia em proposições diretas da Bíblia, como se dá com os restantes dos artigos do Credo, não obstante, alguns textos bíblicos podem ser citados em sua referência. Vejamos, pois, quais são eles, seguidos de uma breve explicação que possa nos dizer se têm ou não alguma relação com a expressão do Credo:

a) Ef 4.9:

Ora, que quer dizer subiu, senão que também havia descido às regiões inferiores da terra?”

Explicação:

A subida de Cristo, isto é, sua ascensão aos céus, após a ressurreição, pressupõe uma anterior descida, que se deu na sua encarnação na terra, onde vive a humanidade, lugar que é inferior em relação aos céus. Não há aqui uma possível referência ao inferno.

b) 1 Pe 3.18-20:

também Cristo morreu, uma única vez, pelos pecados, o justo pelos injustos, para conduzir-vos a Deus; morto, sim, na carne, mas vivificado no espírito, no qual também foi e pregou aos espíritos em prisão, os quais, noutro tempo, foram desobedientes quando a longanimidade de Deus aguardava nos dias de Noé, enquanto se preparava a arca, na qual poucos, a saber, oito pessoas, foram salvos, através da água”.

Explicação:

A Bíblia de Genebra apresenta pelo menos quatro interpretações diferentes da expressão “pregou aos espíritos em prisão”, o que mostra a dificuldade de entendê-la. Talvez ela pudesse confirmar o ensino de que Cristo foi ao inferno proclamar sua vitória aos espíritos em prisão, perversos contemporâneos de Noé, ou talvez, e mais provável, apenas pretende ensinar que Cristo, no espírito, pregou por meio de Noé aos desobedientes que viveram antes do dilúvio, espíritos em prisão quando Pedro escreve sua carta. É, portanto, incerto que este texto faça referência direta à ida de Jesus ao inferno. Mais provável que Pedro quisesse mostrar que a vitória de Cristo foi conhecida pelos perversos.

c) 1 Pe 4.4-6:

Por isso, difamando-vos, estranham que não concorrais com eles ao mesmo excesso de devassidão, os quais hão de prestar contas àquele que é competente para julgar vivos e mortos; pois, para este fim, foi o evangelho pregado também a mortos, para que, mesmo julgados na carne segundo os homens, vivam no espírito segundo Deus”.

Explicação:

Os “mortos” a quem o evangelho foi pregado, evidentemente não estavam mortos ainda quando ouviram a sua pregação, visto que o propósito dessa pregação era, em parte, que fossem “julgados na carne segundo os homens”. Isto só poderia acontecer durante a vida deles na terra. Não parece provável que este versículo esteja associado ao do capítulo 3 de Pedro acima referido, nem que faça referência à descida de Jesus ao inferno.

d) Sl 16.10:

Pois não deixarás a minha alma na morte [sheol em hebraico], nem permitirás que o teu Santo veja corrupção”.

Explicação:

Há quem diga que a alma de Cristo esteve no inferno [sheol faz correspondência ao termo grego hades] antes da ressurreição, pois, segundo o texto, diz que ela não foi deixada lá. Pedro cita este Salmo para expressar a ideia de que Jesus não foi deixado sob o poder da morte porque Deus o ressuscitou (At 2.27,31-32) , ou seja, o próprio Pedro explica o texto do Salmo e não o trata como se ele dissesse que Cristo esteve no inferno.

Depois destas considerações, melhor é entender que a expressão “desceu ao hades” não se encontra literal e explicitamente nas Escrituras Sagradas, nem se baseia em proposições diretas da Bíblia, como se dá com os restantes dos artigos do Credo. Isto não quer dizer que não há base bíblica para ela, algo que exigiria sua retirada do Credo, nem que deva ser considerada uma inserção, sem base bíblica, ao Credo .

Tanto há base nas Escrituras para ela, que Calvino, quando escreveu sobre este assunto, não viu nenhum problema em considerar a expressão de fé como bíblica, por isso, segundo ele, ela não deveria ser omitida do Credo “visto que contém um grande e excelente mistério”. Caso queira conhecer mais amplamente o que ele disse a seu respeito, sugiro a leitura de As Institutas da Religião Cristã, livro 2, capítulo 4, onde ele trata sobre a explicação do credo apostólico.

É nesta parte da clássica obra de teologia cristã reformada que ele escreve:

Já não seria pouco se Jesus Cristo sofresse apenas morte corporal, mas também foi preciso que ele sentisse a severidade do juízo de Deus, a fim de interceder por nós e como que impedir que a ira divina caísse sobre nós, e para satisfazer à justiça de Deus. Para fazer isso, o recurso que lhe coube foi lutar pessoal e diretamente contra os poderes do inferno e contra o pavor da morte… não é de admirar que se diga que ele desceu aos infernos, uma vez que ele sofreu a morte e que esta é imposta pela ira de Deus aos malfeitores”.

Em outro escrito seu, Breve Instrução Cristã, Calvino também discorreu sobre o assunto, conforme transcrição abaixo:

E quando se diz que desceu aos infernos, isso significa que foi ferido por Deus e que suportou e experimentou o horrível rigor do juízo de Deus, interpondo-se Ele mesmo entre a cólera de Deus e nós, e satisfazendo por nós a justiça de Deus. deste modo sofreu e suportou o castigo que merecia nossa injustiça, sendo assim que não havia nEle nem sombra de pecado. Não é que tenha estado o Pai nunca irritado com Ele: como poderia ter-se indignado com seu Filho bem-amado, em quem colocava toda sua complacência? Por outra parte, como teria podido o Filho aplacar o Pai com sua intercessão, se o tiver irritado? Antes ao contrário, Ele carregou o peso da cólera de Deus no sentido de que, ferido e abrumado pela mão de Deus, sentiu em si todos os sinais da cólera e da vingança de Deus, até ver-se obrigado a gritar em sua angústia: “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste? (Mt 15.34)”.

Como, então, entender o significado da expressão “desceu ao hades”?

Do que discorremos acima podemos afirmar:

Não há acordo entre os estudiosos de que na Escritura há um texto que literalmente registre a descida de Cristo ao inferno, entretanto, há vasta base bíblica para afirmar que o sofrimento de Jesus, na sua experiência de morte, foi tal, que podemos dizer que ele experimentou na sua morte, nas palavras de Calvino, os “tormentos do inferno” de modo pleno, que ele em nada foi poupado de sentir toda a ira de Deus que sobre ele caía e que, por carregar todos os nossos pecados, sentiu-se num abismo terrível próprio de quem passa pela morte desamparado e abandonado por Deus, experimentando sua vingança “no sentido de que foi ferido e afligido por sua mão e experimentou todos os sinais que Deus mostra aos pecadores, irando-se contra eles e punindo-os”.

A boa nova (evangelho) é que, lutando contra os tormentos do inferno, Cristo obteve vitória e que neste seu triunfo nós não temos mais motivos para temer passar pelas mesmas coisas pelas quais ele passou quando for a nossa vez de enfrentar a morte. Nossa esperança está toda depositada na sua ressurreição dos mortos ao terceiro dia. É sobre essa certeza que o Credo Apostólico passa imediatamente a tratar.